terça-feira, 18 de junho de 2013

O PL 4.330/2004-A e a inconstitucionalidade da terceirização sem limite


Helder Santos Amorim1

  1. A terceirização sem limite proposta pelo PL 4.330/2004
Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 4.330/2004, que dispõe sobre a contratação de serviços terceirizados e as relações de trabalho dela decorrentes, numa tentativa de normatização do fenômeno da terceirização.
Na década de 1980 a terceirização de serviços se expandiu largamente no cenário empresarial brasileiro, sob a justificativa da necessidade de reformulação do modelo de organização produtiva com vistas ao enxugamento dos custos de produção, para permitir a participação da empresa nacional no mercado concorrencial cada vez mais globalizado. Desde então, a jurisprudência dos tribunais trabalhistas se viram diante do desafio de apreender e mediar as repercussões dessa nova realidade sobre os direitos dos trabalhadores.
Inicialmente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), fundado na clássica doutrina de proteção do Direito do Trabalho, enquadrou como comercialização ou intermediação de mão-de-obra – a ilícita figura da marchandage – qualquer tentativa de contratação de serviço por empresa interposta, à exceção do regime de trabalho temporário (Lei n. 6.019/1974) e da contratação de serviço de vigilância patrimonial (Lei n. 7.102/1983), restringindo duramente a prática da terceirização por meio do seu Enunciado de Jurisprudência n. 256 de 30/09/1986, que dispunha:
Salvo nos casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis 6.019, de 03.01.74 e 7.102, de 20.06.83, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços.”­
Todavia, a restrição jurisprudencial não foi suficiente para inibir a prática da terceirização, que continuou se disseminando largamente em todos os setores da atividade empresarial, na década de 1990, sob o influxo da doutrina política neoliberal hegemônica nos países de econômica central.
Assim, o fato econômico se impôs ao Direito, e em dezembro de 1993 o TST reformou sua posição e passou a admitir a possibilidade de terceirização de “serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador”, cancelando o Enunciado n. 256 e editando a Súmula de Jurisprudência n. 331 de 21.12.1993, uma espécie de solução compromissória entre as exigências do mercado e os ditames de proteção constitucional do trabalho, vazada nos seguintes termos:
(...)
III — Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV — O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que tenha participado da relação processual e conste também do título executivo judicial (grifo nosso).
A terceirização em atividade-fim da empresa continuou sendo vedada, sob a presunção absoluta de tratar-se de intermediação ilícita de mão-de-obra.

Desde então, a Súmula n. 331 do TST tem sido o marco da disciplina jurídica do fenômeno da terceirização na iniciativa privada, permitindo sua prática na atividade-meio das empresas, com fundamento científico na “teoria do foco”, da Ciência da Administração. Segundo essa teoria administrativa, a empresa enxuta do mercado contemporâneo deve concentrar seus esforços e recursos no que constitui a especialidade do seu processo produtivo, transferindo (contratando) a terceiras empresas todas as demais atividades que lhe sejam instrumentais e periféricas, a fim de obter a máxima especialização produtiva, capaz de lhe assegurar melhor qualidade do produto e menor custo de produção.

Porém, nessas duas últimas décadas, mesmo com toda a atuação fiscalizatória do Ministério Público do Trabalho e dos órgãos da Inspeção do Trabalho, a terceirização se espraiou ilegal e indiscriminadamente em atividades finalísticas das empresas.

Em pesquisa encomendada pelo Sindicato dos Empregados em Empresas de Prestação de Serviços a Terceiros do Estado de São Paulo (Sindeepres), Marcio Pochmann, professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp), avaliou os desdobramentos do movimento de terceirização vivido no país em duas décadas, de 1985 a 2005, a partir de dados relativos ao Estado de São Paulo2.

Segundo o pesquisador, diversamente do que a teoria sugere, a terceirização desenvolvida pelas empresas no Brasil não visou, inicialmente, à qualificação do produto, mas, essencialmente, a assegurar a própria sobrevivência empresarial, num contexto de quase estagnação econômica na década de 1980 e de ampla competição internacional desregulada.

Avalia o pesquisador que, em face desses fatores, a verdadeira reestruturação produtiva no Brasil acabou se concentrando em alguns segmentos dinâmicos, tradicionalmente internacionalizados, enquanto grande parte do segmento produtivo, marginalizada das condições adequadas de financiamento e acesso tecnológico, recorreu à terceirização como mais uma estratégia empresarial defensiva, uma espécie de tábua de salvação, ao largo dos seus fundamentos teóricos.

Nesse cenário de acirrada e desigual concorrência interna e externa, grande parte dos empresários optou pela terceirização como forma de reduzir custos de contratação de mão-de-obra, destacadamente no setor de serviços, razão pela qual a terceirização acabou produzindo efeitos nefastos sobre o sistema constitucional de proteção social do trabalhador, tais como:

(a) enseja empregos precários e transitórios porque as empresas fornecedoras ou prestadoras precisam de grande flexibilidade, conforme os movimentos do mercado, já que estão submetidas a ambiente de acirrada concorrência pelos contratos de prestação de serviços, e, nesse movimento, promovem a redução salarial e de benefícios sociais dos trabalhadores terceirizados como meio de sobrevivência;
(b) promove a piora sensível das condições de saúde e segurança no trabalho dos empregados terceirizados, o que enseja a maior incidência de acidentes de trabalho entre estes trabalhadores;
(c) enseja a insegurança no emprego, com ampliação da rotatividade de mão-de-obra;
(d) promove tratamento desigual e discriminatório entre o trabalhador terceirizado e o trabalhador contratado diretamente pela empresa tomadora do serviço para exercício de idêntica função; e
(e) pulveriza a ação sindical, em face da transferência de grande contingente de empregados diretos, para empresas prestadoras de serviços, desintegrando a identidade de classe dos trabalhadores e desmobilizando os movimentos de pressão voltados à conquista de novos direitos3.

Nesse contexto, dentre quase trinta projetos de lei que tramitam na Câmara dos Deputados, voltados a disciplinar a prática da terceirização, o PL 4.330/2004-A é o que hoje se encontra em mais adiantado estado de tramitação.

A proposição original, de autoria do Deputado Sandro Mabel (PL), foi aprovada em 2006 na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio (CDEIC), e em 2011 foi aprovado na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público (CTASP).

Já tramitando na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), incorporou-se ao PL 4.330/2004 um novo texto, apresentado como substitutivo pela Comissão Especial destinada a promover estudos e proposições voltadas à regulamentação do trabalho terceirizado no Brasil, que funcionou entre os meses de junho e novembro de 2011, e que teve por Relator o Deputado Roberto Santiago (PSD). Com esse novo texto, o projeto de lei passou a ser identificado como PL 4.330/2004-A, recebendo parecer favorável do Relator, Deputado Arthur Maia (PMDB).

Na versão original do texto, do Deputado Sandro Mabel, a terceirização era permitida nas “atividades inerentes, acessórias ou complementares à atividade econômica da contratante” (art. 4º, § 2º), o que já demonstrava seu propósito liberalizante da terceirização para além das atividades-meio das empresas, já que, sob o ponto de vista estritamente etimológico, atividades inerentes são aquelas que, por natureza, integram a atividade principal da empresa contratante4.

Esse texto original não disciplinava os limites da terceirização no âmbito da Administração Pública.

Já a versão atual do PL 4.330/2004-A, do Deputado Roberto Santiago (PSD), em tramitação na CCJ, vai muito além, em seu espírito liberalizante, pois permite a terceirização literalmente em “quaisquer atividades do tomador de serviços” (art. 2º, II), inclusive nas empresas públicas, sociedades de economia mista e suas controladas, em todas as instâncias federativas (art. 1º, § 2º, I).

O novo texto do PL ainda supera em muito o propósito liberalizante do texto original, ao alargar os limites da terceirização no âmbito da Administração Pública Direta, Autárquica e Fundacional (art. 1º, § 2º, II), permitindo a sua prática em quaisquer atividades que não sejam “atividades exclusivas de Estado”, no âmbito da União, Estados e Municípios (art. 12). Atividades exclusivas de Estado é um termo sem definição legal, e que, segundo a doutrina do Direito Administrativo, diz respeito a atividades estatais muito restritas de polícia, fiscalização, fomento, cobrança tributária, previdência social etc.

Para se ter uma ideia do nível que alcança o propósito disseminador da terceirização, veiculado pelo novo texto do PL 4.330/2004-A, atualmente o Decreto n. 2.271/1997 somente admite a terceirização no âmbito da Administração Pública Direta federal, em “atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares”, ou seja, em típicas atividades-meio, que não interferem nas atribuições legais dos órgãos e entes públicos, a exemplo das atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, manutenção de prédios, equipamentos e instalações etc (art. 1º). Jamais em atividades finalísticas dos órgãos e entes públicos.

Se aprovado, o PL 4.330/2004-A revogará o citado Decreto n. 2.271/1997, abrindo as portas para a terceirização em praticamente todas as carreiras e espaços centrais dos órgãos e entes públicos que não estejam inseridos naquele estrito e duvidoso círculo das atividades exclusivas de Estado.

Ainda assim, em seu parecer, o Relator do PL 4.330/2004 na CCJ, Deputado Arthur Maia (PMDB), concluiu pela constitucionalidade, jurisdicidade e técnica legislativa do texto, e no mérito, reputou conciliados no projeto de lei todos os princípios constitucionais relacionados ao tema da terceirização, quais sejam, os princípios da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa e dos limites da liberdade para contratar5.

No entanto, conforme demonstraremos a seguir, a terceirização sem limite, tanto no espaço da empresa privada, quanto no âmbito da Administração Pública, tal como proposto pelo PL 4.330/2004, afronta diretamente a Constituição da República, seja por violar o necessário equilíbrio entre os princípios constitucionais conflitantes, privilegiando os interesses expansivos do capital em detrimento do sistema constitucional de proteção aos direitos fundamentais dos trabalhadores, seja por contrariar os princípios constitucionais da moralidade administrativa, da impessoalidade e da organização funcional da Administração Pública.

  1. A inconstitucionalidade da terceirização sem limite no âmbito privado

A vedação da terceirização na atividade-fim das empresas, prevista na Súmula 331 do TST, funda-se no princípio da responsabilidade social e jurídica do empreendedor pelo risco da atividade econômica (CLT, art. 2º), em especial o risco decorrente da relação de emprego constitucionalmente prevista e protegida contra a despedida arbitrária (Constituição, art. 7º, I), alicerce de aplicação e efetividade de todos os direitos fundamentais dos trabalhadores, previstos no art. 7º da Constituição. Daí porque, a terceirização em atividade-fim hoje é considerada intermediação ilícita de mão-de-obra.

Já o art. 2º, II, do PL 4.330/2004-A, pretende reverter essa lógica protetiva e instituir um modelo terceirização sem qualquer limite no âmbito da empresa privada, inclusive das empresas estatais, ao definir como contratada “a empresa prestadora de serviços especializados, que presta serviços terceirizados determinados e específicos, relacionados a quaisquer atividades do tomador de serviços(grifo nosso).

Na medida em que permite a terceirização em quaisquer atividades empresariais, inclusive em suas atividades finalísticas e centrais, o PL 4.330/2004-A supervaloriza o princípio constitucional da livre iniciativa, elastecendo a liberdade de contratação de serviços para além do permissivo constitucional, já que submete a sacrifício desproporcional os princípios do valor social do trabalho e da função social da propriedade, ensejando o esvaziamento da eficácia dos direitos fundamentais dos trabalhadores.


O problema central reside em que a terceirização reduz o nível de efetividade dos direitos fundamentais dos trabalhadores terceirizados, mesmo sem retirá-los do plano de vigência formal, já que promove a redução salarial e de benefícios sociais, enseja empregos precários com alta rotatividade de mão-de-obra, piora consideravelmente as condições de saúde e segurança, permite a maior incidência de acidentes de trabalho entre os trabalhadores terceirizados e dificulta a ação sindical voltada à conquista de novos direitos.
Interceptando a relação entre o trabalhador e o beneficiário final do seu trabalho, a terceirização triangula essa relação com a presença de um terceiro agente – a empresa contratada – submetido às regras do mercado concorrencial de serviço. Com isso, as condições do trabalho terceirizado passam a sofrer o influxo das mesmas regras de mercado, que exigem flexibilidade, mobilidade, transitoriedade e redução permanente de custos, forçando a economia de investimento em promoção salarial, em qualificação profissional e em medidas de saúde e segurança. Esse movimento fragiliza profundamente a condição jurídica desse trabalhador, promovendo a desvalorização social do seu trabalho.
Esse esvaziamento da eficácia dos direitos sociais corresponde, no plano prático, à negação ou redução de sua efetividade. O direito incide no plano formal, mas não se realiza plenamente no plano material, pois o sistema jurídico de proteção desse direito encontra na relação terceirizada obstáculos intransponíveis à sua plena aplicação.
Por todas essas repercussões deletérias sobre o sistema de proteção jurídica do trabalhador, a limitação da terceirização constitui verdadeira exigência constitucional.
A limitação da terceirização a um nível aceitável social e juridicamente é medida de justa proporção entre os interesses constitucionais colidentes, do capital e do trabalho. Por outro lado, a ausência de equilíbrio entre esses interesses vicia a norma jurídica com severa inconstitucionalidade, em face da violação do princípio da proporcionalidade, vetor de interpretação da norma constitucional que visa a garantir a unidade da Constituição.
O vício de inconstitucionalidade material decorrente do excesso de poder legislativo constitui um dos mais tormentosos temas do controle de constitucionalidade da atualidade, pois cuida de examinar a observância do princípio da proporcionalidade, à luz do qual, o sacrifício a um interesse ou princípio constitucional só é admissível na medida mínima indispensável à preservação de outro interesse ou princípio igualmente constitucional.
Nesse exame de ponderação, o princípio da proporcionalidade exige sempre uma solução­ de equilíbrio que preserve a unidade hierárquico-normativa, a supremacia e a força normativa da Constituição, de forma que o Direito exerça sua função distributiva de justiça.
Em seu parecer, o Relator do PL reconhece a necessidade de análise da matéria sob esse prisma da ponderação de interesses constitucionais. Embora justificando posição diversa da que se sustenta nesse artigo, diz o Relator:
Os princípios constitucionais, muitas vezes, são concorrentes entre si. Na medida em que a Constituição trata de todos os aspectos da vida social e política de uma nação, é compreensível que os vários princípios que abriga também produzam eventual tensionamento de interesses opostos. Afinal, se é no seio da sociedade que acontecem as disputas próprias do relacionamento humano, é natural que a constituição, como contrato social, venha a tutelar interesses que sejam contrapostos.

Outrossim, o papel do legislador, como representante que é das várias matizes da sociedade, é proceder a ponderação destes princípios, subsumindo suas distensões, respeitando os limites delineados pela constituição, para, ao final, produzir marco regulatório capaz de fornecer segurança jurídica e justiça social”.

Mas, em que pese o reconhecimento teórico da necessidade da ponderação dos interesses envolvidos, é notória, portanto, a inadequação do exame de ponderação realizado pelo Relator do projeto, em seu parecer, quando deixa de considerar nesse exame as repercussões deletérias da terceirização sobre caros valores constitucionais.
O PL 4.330/2004-A supervaloriza a busca desregrada do lucro, interesse do capital produtivo, em detrimento da tutela jurídica do trabalhador, não apenas quando suprime os necessários limites de contenção civilizatória da terceirização, mas também quando, em diversas outras passagens, potencializa seus efeitos deletérios, a saber:

  1. Quando autoriza e incita a cadeia de subcontratações, ensejando a figura da empresa sem empregado e sem responsabilidade pelas relações de trabalho necessárias à produção, com o aprofundamento das repercussões deletérias da terceirização:

Art. 2º, § 4º - A contratada contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus empregados ou subcontrata outra empresa ou profissionais para realização desses serviços (grifo nosso).

  1. Quando reduz o nível de responsabilidade do tomador de serviço pelas condições de saúde e segurança dos trabalhadores terceirizados, em seu estabelecimento, reduzindo de responsabilidade solidária, conforme já reconhecido pela jurisprudência trabalhista, para responsabilidade subsidiária:
Art. 9º - É responsabilidade subsidiária da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos empregados da contratada, enquanto estes estiverem a seu serviço e em suas dependências ou em local por ela designado (grifo nosso).
  1. Quando autoriza a contratação de terceirização por pessoa física, incitando a disseminação indiscriminada da terceirização no setor rural e institucionalizando a indesejável figura do “gato” aliciador de mão-de-obra, já que no setor rural a maior parte dos produtores atua na condição de pessoa física:
Art. 2º, I - Para os fins desta lei, considera-se contratante: a pessoa física ou jurídica que, como tomadora dos serviços, celebra contrato de prestação de serviços terceirizados (...)
  1. Quando institucionaliza a terceirização de correspondente bancário e postal, atividades que constituem o objeto social das instituições bancárias e da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT):
Art. 2º, § 5º - As exigências de especialização, constantes do inciso II do caput deste artigo, e de objeto social único, prevista no § 2° deste artigo, não se aplicam às atividades de prestação de serviços de correspondente bancário e de correspondente postal.

Diante de todos esses aspectos, a proposição legislativa acaba por fomentar espaço propício para um modelo de exploração selvagem de mão-de-obra, no campo e nas cidades, para êxtase do lucro desmedido, tornando letra morta a disposição contida em seu art. 1º, § 1º, segundo a qual, “é vedada a intermediação de mão de obra”. Essa mensagem normativa perde toda carga de significado quando lida sistematicamente com as outras normas acima analisadas.
A proposição legislativa visa a desconstruir a valiosa experiência jurisprudencial da Justiça do Trabalho na regulação da terceirização, nas últimas décadas, abandonando os limites civilizatórios previstos na vintenária Súmula 331 do TST, para eleger o livre mercado de serviços como o novo marco regulatório de valor do trabalho no país, com sua conhecida eficiência para esvaziar a eficácia dos direitos fundamentais dos trabalhadores, “contornando” a sua vigência formal.
Mesmo pressionada por uma prática econômica e por um discurso econômico neoliberal hegemônico, na década de 1990, a jurisprudência trabalhista conseguiu mediar o conflito entre o capital e o trabalho, no plano da terceirização, estabelecendo por meio da Súmula 331 do TST uma espécie de cláusula compromissória entre os interesses do capital e do trabalho.
Ao limitar a terceirização à atividade-meio das empresas, vedando-a na atividade-fim, a Súmula 331 do TST passou a figurar como uma espécie de ponderação in abstracto de princípios constitucionais, voltada a incidir de forma genérica e ad futurum sobre uma gama de situações semelhantes, aproximando-se, neste aspecto, de uma lei em sentido material.
Sendo inquestionável a sua justeza constitucional como marco regulatório da terceirização na iniciativa privada, nessas últimas duas décadas, a Súmula 331 teve destacada influência também na regulamentação dos limites da terceirização no âmbito da Administração Pública, influindo sobremaneira na fixação dos limites hoje dispostos no Decreto n. 2.271/19976.
O PL 4.330/2004-A propõe o abandono de toda essa construção jurisprudencial de pensamento, forjada e amadurecida no trato cotidiano dos conflitos decorrentes do trabalho terceirizado, trocando a cláusula conciliatória de interesses constitucionais por um modelo de livre mercado de serviços que reduz a função social da propriedade e somente satisfaz aos interesses expansionistas do capital.
Paradoxal é observar que o PL 4.330/2004-A, em sua versão atual, totalmente liberalizante da terceirização, sobrevém num momento em que a economia nacional, por força de conquistas alcançadas na última década, já não se encontra sujeita às mesmas pressões político-econômicas internacionais da década de 1990. Ao mesmo tempo, busca desconstruir o pacto compromissório da Súmula 331, firmado pelo TST naquela mesma década, quando todos os fatores econômicos pressionavam por uma solução de livre mercado.
Isso mais evidencia a desproporção do intento liberalizante do projeto de lei, diante da desnecessidade dos seus efeitos restritivos de direitos, nesse momento, como medida de afirmação da economia nacional.
O descompromisso genético da proposição legislativa com o justo equilíbrio entre os interesses da livre iniciativa e do valor social do trabalho também se evidencia na Pesquisa de Emprego e Desemprego de 2007, realizada pelo DIEESE em Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre, Salvador, Recife e Distrito Federal. Essa pesquisa demonstra que entre os anos de 2002 e 2005, quando foi proposto o PL 4.330/2004, houve um pequeno recuo da terceirização na iniciativa privada em face da queda na qualidade da produção7.
Isso põe em séria dúvida a legitimidade social da iniciativa legislativa, pois se a qualidade da produção foi prejudicada pela terceirização, a razão de sua expansão somente se justificaria no propósito de redução dos custos sociais do trabalho, o que mais acentua o caráter unilateral da proposição, na constelação dos interesses constitucionalmente conflitantes.
E por se demonstrar injustificada e desproporcional, enquanto medida restritiva de direitos sociais, a terceirização sem limite do PL 4.330/2004-A promove o retrocesso social e se revela inconstitucional, violando o princípio de justiça que alicerça o Estado Democrático de Direito.

  1. A inconstitucionalidade da terceirização sem limite no âmbito da Administração Pública

O PL 4.330/2004-A elastece sobremaneira a possibilidade de terceirização de atividades no âmbito dos órgãos e entes públicos, supervalorizando o princípio da livre contratação de serviços na iniciativa privada, em detrimento dos princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade, previstos no art. 37, caput, da Constituição.

Conforme salientado anteriormente, enquanto o Decreto n. 2.271/1997, em vigor, somente admite a terceirização em atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares no âmbito de quaisquer órgãos e entes públicos, o art. 12 do Projeto de Lei somente veda a contratação de serviços terceirizados “para a execução de atividades exclusivas de Estado (...)”, o que implica a derrogação dos limites impostos pelo Decreto e o elastecimento desmedido da terceirização no âmbito das entidades da Administração Direta, Autárquica e Fundacional.
A menção legislativa a “atividades exclusivas de Estado”, conceito sem previsão em norma jurídica e marcada por forte caráter ideológico, não delimita a terceirização no âmbito dos órgãos e entes públicos, como aparenta fazer, apenas impedindo, em princípio, a privatização de serviços que já são, por sua própria natureza, atividades públicas tipicamente estatais, tais como as atividades de polícia, fiscalização, cobrança de tributos, fomento, previdência social etc.
Nesse panorama, a ausência de um marco limitador da terceirização no âmbito da Administração Pública certamente ensejará sua disseminação indiscriminada no interior dos órgãos e entes públicos. E assim como no setor privado, a terceirização também produz repercussões profundamente indesejáveis no âmbito público.
É fato notório que na última década, mesmo com todos os limites impostos à sua prática, a terceirização disseminou-se no interior dos órgãos e entes públicos em todos os níveis federativos, em todas as esferas de Poder, ensejando uma série de repercussões deletérias sobre importantes valores constitucionais.
No plano institucional, a terceirização indiscriminada dinamizou o movimento de desregulamentação institucional e de desprofissionalização do serviço público, concorrendo para liquidar funções e esgotar planos de carreiras indispensáveis ao exercício das responsabilidades estatais.
No plano social, por sua vez, esta terceirização sem limite precariza as condições de trabalho, fragiliza a organização coletiva dos servidores e ainda acentua a discriminação entre servidores públicos e trabalhadores terceirizados, em grave violação do nível de garantia constitucional dos direitos fundamentais destes trabalhadores.
A justificação constitucional para a prática da terceirização no âmbito público reside na busca da máxima eficiência administrativa. Isso porque a terceirização de atividades instrumentais e de apoio, de fato, permite a concentração dos recursos humanos e materiais da administração pública, assim como a própria energia administrativa, na realização de suas competências legais, privilegiando o princípio da eficiência previsto no art. 37, caput, da Constituição.
No entanto, a terceirização sem limite, em atividades que constituem competências nucleares da Administração Pública, viola o “princípio constitucional da organização funcional da administração pública”, que pressupõe um quadro próprio de pessoal, organizado e profissionalizado, para o exercício contínuo das atividades concretizadoras do interesse público8. Por sua vez, a organização funcional pressupõe a predominância das relações de trabalho firmadas diretamente entre o Poder Público e seus agentes, sujeitos ao regime estatutário ou de Direito Privado, mas sempre exclusivamente comprometidos com a realização de competências institucionais do Estado.
Ao viabilizar a inserção desregrada de pessoal nas atividades centrais dos entes estatais, a terceirização indiscriminada também viola os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade, pois substitui o concurso público de servidores pela licitação de empresas, criando espaço propício à promiscuidade das relações entre o público e o privado, espaço este onde prolifera o clientelismo e o nepotismo. É a negação pura e simples do elemento constitucional democrático da meritocracia como critério objetivo e impessoal de seleção do quadro de servidores públicos, em violação direta ao art. 37, II, da Constituição.
Daí a razão pela qual a terceirização no âmbito da Administração Pública, para atender aos ditames constitucionais, deve ser tratada pela legislação como uma medida residual em relação à contratação direta de servidores públicos, sendo inconstitucional a proposição legislativa que não imponha esses limites.
É tranquila a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que as atividades permanentemente necessárias à execução das competências legais dos entes e órgãos públicos devem ser atribuídas a servidores e empregados públicos, sob pena de desvirtuamento do mandamento constitucional (Constituição, art. 37, I e II).
À luz de todas essas razões, resta evidente que o art. 12 do referido Projeto de Lei, no ponto em que promove a terceirização sem limite no âmbito da Administração Pública, viola diretamente regras e princípios insculpidos na Constituição da República, vocacionados a garantir a higidez do regime democrático e o respeito aos valores republicanos na administração da coisa pública, razão pela qual a proposição sofre de irremediável inconstitucionalidade.
  1. Conclusão
Embora a Constituição da República não trate literalmente do fenômeno da terceirização, disciplina diversos princípios, interesses e valores que são diretamente atingidos pela prática da contratação de serviços terceirizados.
A terceirização é um fenômeno administrativo que, na iniciativa privada, permite a focalização da empresa em sua vocação central, mas que reduz o nível de eficácia dos direitos fundamentais dos trabalhadores, e que, no âmbito público, quando praticada além das atividades de apoio, restringe a eficácia de princípios constitucionais caros ao regime democrático, tais como o princípio da impessoalidade e o princípio de organização funcional da Administração Pública no exercício de suas atribuições.
Por isso, a sua prática, determinada por razões de organização econômica, para satisfazer legitimamente ao interesse constitucional da livre iniciativa e para atender o princípio da eficiência no espaço da Administração Pública, deve limitar-se a um patamar mínimo indispensável à realização destes princípios. Além desse patamar mínimo, a terceirização constitui excesso que somente atende aos interesses expansionistas da livre iniciativa, violando de forma desproporcional aqueles outros valores constitucionais de idêntica magnitude.
O vício de inconstitucionalidade material decorrente do excesso de poder legislativo constitui relevante tema do controle de constitucionalidade da atualidade, pois cuida de examinar a observância do princípio da proporcionalidade, à luz do qual, o sacrifício a um interesse ou princípio constitucional só é admissível na medida indispensável à preservação de outro interesse ou princípio igualmente constitucional.
O PL 4.330/2004, ao propor a terceirização sem limite na iniciativa privada, e ao propor a terceirização desmedida no espaço da Administração Pública, promove o desequilíbrio daqueles valores constitucionais atingidos, fundantes do Estado Democrático de Direito, supervalorizando os interesses da iniciativa privada em prejuízo da eficácia dos direitos sociais dos trabalhadores e dos princípios republicanos regedores da Administração Pública.
Portanto, considerando que, diante do conflito entre interesses ou valores constitucionais, o princípio da proporcionalidade exige solução­ que preserve a unidade hierárquico-normativa da Constituição, sob essa ótica conclui-se que os dispositivos do PL 4.330/2004-A, que permitem a terceirização nas atividades finalísticas das empresas e entes públicos, revelam-se irremediavelmente inconstitucionais.

Referências
AMORIM, Helder Santos. A Terceirização no serviço público: uma análise à luz da nova hermenêutica constitucional. São Paulo: LTr.
DIEESE. Nota Técnica n. 112. Terceirização e negociação coletiva: novos e velhos desafios para o movimento sindical brasileiro. Julho de 2012. Disponível em < http://www.slideshare.net/luizdenis/ dieese-nota-tcnica-terceirizao> em 09.06.2013.
DIEESE. Pesquisa de emprego e desemprego 2007. Disponível em: <http://www.dieese.org.br> Acesso em: 23.11.2007; KEIFER, Sandra. Terceirização perde status, mas não para o governo. Estado de Minas, 23.09.2007, Caderno Economia, p. 03-06.

PL 4.330/2004-A. Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça. Parecer do Relator, Deputado Arthur Maia. Disponível em < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao
?idProposicao=267841> Em 10.06.2013.
POCHMANN, Márcio. A superterceirização dos contratos de trabalho. Pesquisa publicada no site do SINDEEPRES — Sindicato dos Empregados em Empresas de Prestação de Serviços a Terceiros. Disponível em: <http://www.sindeepres.org.br> Acesso em: 13.10.2007



1 Procurador do Trabalho lotado na Procuradoria Regional do Trabalho da 3ª Região. Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
2 POCHMANN, Márcio. A superterceirização dos contratos de trabalho. Pesquisa publicada no site do SINDEEPRES — Sindicato dos Empregados em Empresas de Prestação de Serviços a Terceiros. Disponível em: <http://www.sindeepres.org.br> Acesso em: 13.10.2007.

3 DIEESE. Nota Técnica n. 112. Terceirização e negociação coletiva: novos e velhos desafios para o movimento sindical brasileiro. Julho de 2012. Disponível em < http://www.slideshare.net/luizdenis/ dieese-nota-tcnica-terceirizao> em 09.06.2013.
4 Dicionário Priberam On Line. Disponível em < http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx> 09.06.2013.
5 PL 4.330/2004-A. Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça. Parecer do Relator, Deputado Arthur Maia. Disponível em < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao
?idProposicao=267841> Em 10.06.2013.
6 AMORIM, Helder Santos. A Terceirização no serviço público: uma análise à luz da nova hermenêutica constitucional. São Paulo: LTr, item 4.7.
7 DIEESE. Pesquisa de emprego e desemprego 2007. Disponível em: <http://www.dieese.org.br> Acesso em: 23.11.2007; KEIFER, Sandra. Terceirização perde status, mas não para o governo. Estado de Minas, 23.09.2007, Caderno Economia, p. 03-06.


8 AMORIM, Helder Santos. A Terceirização no serviço público: uma análise à luz da nova hermenêutica constitucional. São Paulo: LTr, item 6.6.

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